A difícil arte de ser cidadão
Sentido que os gregos, os inventores da democracia, davam ao cidadão, certamente limitava-se ao fato de que ele deveria ser homem e nascido na pólis. Porém, o que nos legaram foi a indicação de que o conflito de interesses entre cidadãos só podia ser mediado pelo debate, pela palavra (lógos, em grego) expressa no Espaço Público (ágora, praça pública). Os destinos da cidade – portanto, de todos – estavam ligados indissoluvelmente ao exercício da palavra que dava visibilidade ao cidadão. É sobre este aspecto, que a filósofa Hanna Arendt define a importância do Espaço Público:
“Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública...”.
Entretanto, já em nossa era, a partir do século XV, a Modernidade instaura o predomínio do Espaço Privado. O que foi a Modernidade? Podemos caracterizá-la de inúmeras maneiras. Mas, sem dúvida, podemos sintetizá-la, a partir do fim dos laços sociais que caracterizam o mundo medieval, como o momento da Cultura Ocidental em que surge a ideia de indivíduo, sujeito cujos laços sociais são, desde então, regidos pelo aparecimento da figura-modelo do homem burguês. Segundo o historiador Richard Sennett , o Espaço Público vai perdendo gradativamente o papel que possuía para o exercício da cidadania, ou seja, o do exercício da civilidade:
“A civilidade tem como objetivo a proteção dos outros contra serem sobrecarregados por alguém”.
Trata-se agora, ao contrário, da ascensão do Espaço Privado. Ou, segundo a expressão de Sennett, da "tirania da intimidade”. O que significa tal expressão? A concepção moderna de subjetividade, limitada à ideia de que somos apenas indivíduos (do latim, aquele que é indiviso), privilegiaria o Espaço Privado na medida em que nele exerceríamos algum poder sobre as nossas vidas privadas. (É muito comum certa concepção de liberdade como naturalmente exercida por minha vontade, pelos meus desejos).
“As pessoas tentaram, portanto, fugir e encontrar nos domínios privados da vida, principalmente na família, algum princípio de ordem na percepção da personalidade”.
Esta afirmação introduz na vida cultural um novo viés para a compreensão do ser do homem: o homem psicológico, aquele que pertence ao mundo privado dos sentimentos pessoais. Um intimismo que, segundo Sennett, se apresenta nas relações sociais, sob a forma do narcisismo.
Muitos filósofos acentuam a característica do narcisismo, tais como a filósofa brasileira Marilena Chauí, para compreender os obstáculos ao exercício da cidadania. Para ela, é decisiva a produção massiva de subjetividades que se orientem pelas imagens midiáticas do mundo como espetáculo, da vida como um show, do consumo como condição única da existência. Entretanto, para compreendermos melhor tais subjetividades narcísicas, é preciso que pensemos em um conceito que as sustenta: o fetichismo da mercadoria, momento em que as condições sociais de produção de bens de consumo são “apagadas” para que sejam realçados os objetos em si mesmos, caso em que
“as mercadorias adquirem um sentido, um mistério, um conjunto de associações que não tem nada a ver com o seu uso”.
Certamente, a predominância do Espaço Privado como determinante das relações sociais e as expressões de uma subjetividade narcísica não elimina a herança grega da ideia de Espaço Público:
Mas ainda é possível manter esta herança em decorrência das transformações definitivas ocasionadas pelo Espaço Privado?
Ou
precisaríamos criar um novo conceito de Espaço Público, para dar conta do efetivo exercício da cidadania?
( ALVES, Antônio Benedito de Castro. A difícil arte de ser cidadão. In: OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; COSTA, Ricardo Cesar Rocha da. Sociologia para Jovens do Século XXI. 4a edição Reformulada e Ampliada. Imperial Novo Milênio: Rio de Janeiro, 2016).
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